O capitalismo barulhento e o
sagrado direito ao sossego
LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador
Meu amigo Walter Ego foi sábado passado ao cinema assistir ao último (e excelente) filme de Woody Allen, Meia noite em Paris. Como não poderia deixar de ser, algo aconteceu. E, dessa vez foi o barulho. Não o dos espectadores, mas do próprio exibidor. Ele me disse: "O que acontece com esse pessoal dos cinemas. Os trailers e demais besteiras que passaram antes do filme tinham uma altura para lá de dezenas de decibéis". E para comprovar que falava a verdade, completou: "E não era só eu a reclamar – embora só as pessoas que estavam perto pudessem ouvir. Duas senhoras sentadas à minha frente se queixavam e uma dizia já estar com dor de ouvido. Só melhorou durante a exibição do filme, quando o volume foi abaixado um pouco". Depois, perguntou: "Dá para processar o exibidor? E a vigilância sanitária não faz nada?"
Eu respondi que, claro, se a pessoa sofrer algum
distúrbio, por exemplo, tendo dores de ouvido, pode sim pedir indenização por
danos materiais – caso haja tido algum gasto ou perda financeira e, dependendo
do impacto, até mesmo indenização por danos morais. E que, obviamente, cabe à
fiscalização municipal checar o nível de decibéis produzido nas salas de
exibição e, em caso de exagero, determinar o uso adequado dos instrumentos
sonoros.
Como ultimamente os meios de comunicação têm
abordado com certa regularidade a questão do barulho, que causa danos e nem
sempre tem tratado as questões jurídicas como exige o caso, eu aproveito o
episódio de meu amigo, para cuidar do assunto, lembrando, desde logo, que a
violação do sossego no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida
e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm
direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais
violado abertamente.
O interessante nessa garantia legal, é que ela é
uma espécie de ausência: implica um obstáculo à ação das outras pessoas. Nos
tempos atuais das grandes cidades e metrópoles ela se dá num "vazio",
numa falta, num espaço, digamos assim, intocado.
Parece que nas sociedades industrializadas
contemporâneas, nesta era capitalista do império globalizante em que vivemos,
tudo faz barulho. Existe mesmo uma busca incessante em sua produção: são
músicas em altos volumes nos automóveis, nas lojas e nos restaurantes, nos
clubes, nas academias, nos intervalos dos espetáculos teatrais e nos cinemas,
nos estádios de futebol, onde há também o barulho das torcidas que atinge toda
a redondeza; nas festas de aniversário e de casamento; são shows ao vivo em
estádios que vão muito além de suas arquibancadas; são bares, boates e
danceterias que invadem o espaço dos vizinhos etc.
De fato, todo o sistema é assim.
Há excesso de
ruído por todos os lados: dos veículos nas ruas, das máquinas nas fábricas, das
construções, das oficinas etc. Trata-se de um enorme amontoado de ações
barulhentas, algumas ensurdecedoras, nem sempre em nome do tão sonhado
progresso.
Não posso deixar de fora os sons
"privados" dos aparelhos eletrônicos domésticos que saem pelas
janelas de apartamentos e casas perturbando os vizinhos com seus exagerados
volumes. Há também latidos incessantes de cachorros e até "imitações"
dos papagaios (licenciados ou não pelo Ibama). Na sua crônica da revista Veja
São Paulo, publicada há alguns meses, Walcyr Carrasco citou um caso de uma
arara que perturbava os vizinhos de um prédio na cidade de São Paulo. Enfim, os
barulhos, ruídos, sons em altos volumes entram em nossas casas e apartamentos a
toda hora sem pedir licença, violando esse nosso direito sagrado ao silêncio e
ao sossego.
É verdade que algumas pessoas até se acostumaram
com isso e outras dizem que "gostam", mas o fato é que barulho não
solicitado fere o direito sagrado ao sossego e pode gerar danos à saúde.
Não abordarei um aspecto importante dos sons não
pedidos, como a imposição dos estabelecimentos comerciais de que seus
frequentadores escutem as músicas por eles escolhidas (o que, por exemplo, em
academias de ginástica e musculação pode ser altamente prejudicial não só pelo
excesso de volume, como pela qualidade das músicas...).
Tratarei do outro lado da questão: do direito ao silêncio, ao sossego e
ao descanso, sagrados e que qualquer pessoa pode exigir.
O direto ao sossego é correlato ao direito de
vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois
envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em
estipular esse direito que envolve uma série de transtornos já avaliados e
julgados pelo Poder Judiciário.
Por exemplo, o
Judiciário já considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho
produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando
perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos
oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em
zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de
cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos
excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio
residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas
que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale
para sons produzidos eletronicamente etc.
Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro
reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido
autorizado pela autoridade competente.
Num caso em que se considerou excessivo
o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação da planta pela Prefeitura e
seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou que a quadra de esportes
produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha aprovado sua construção.
Aliás, lembro que os shows produzidos em estádios
de futebol e que violam às escâncaras o direito ao sossego dos vizinhos são,
como regra, autorizados pela Prefeitura local. Alguns shows, inclusive, varam a
noite e a madrugada, numa incrível violação escancarada. Realço que, nesses
casos, a própria Prefeitura é responsável pelos danos causados às pessoas.
Dizia acima que a legislação pátria é rica no tema.
Muito bem.
A Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) no seu artigo
42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o
sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo
profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou
sinais acústicos;
provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que
tem a guarda".
Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o
latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no
art. 3º do antigo Decreto-Lei 24.645/1934 que dispõe que "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de
abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares
anti-higiênicos ou que lhes impeçam a
respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz".
Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação
ambiental.
A lei de Crimes Ambientais (Lei
9605/98)
estabelece, no seu art. 32, prisão para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais
silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos".
É essa mesma lei ambiental que
pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54
diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem
ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade
de animais ou a destruição significativa da flora".
E o novo Código Civil Brasileiro,
que entrou em vigor em janeiro de 2003, garante o direito ao sossego no seu
art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o
direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego
e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade
vizinha".
Nesse ponto, anoto que para a
caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige
demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera
modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as
pessoas gozam, para a caracterização do delito.
Apenas no crime de poluição
sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído.
Na caracterização do
sossego não. Basta a perturbação em si.
Evidente que os danos causados
são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das
pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar
danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu
trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras.
A questão, portanto, ao contrário do que tem sido
noticiado, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos
órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera
judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com
pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo
e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais.
FONTE: Escola Paulista de Magistratura
18/8/2011
http://www.epm.tjsp.jus.br/Internas/ArtigosView.aspx?ID=11654
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