"A
história é testemunha do passado,
luz
da verdade, vida da memória,
mestra
da vida anunciadora dos tempos antigos."
(Marcus
Tullius Cícero - Roma, - 116 à - 43 A.C.)
Prof. Sohaku Bastos
Dominar o conhecimento
do passado ajuda a controlar o presente. Por outro lado, contar fatos supostamente
ocorridos, quando inverídicos, reforça, socialmente, o que nunca existiu.
Legitima-se,por meio da repetição e da multiplicação midiática, a distorção
histórica dos fatos, transformando mentiras em verdades. Em alguns setores da
sociedade se estabeleceu a “estória” se passando por história, mediante a
manipulação de dados narrados pelos aproveitadores, pelos mais poderosos e
pelos vencedores de conflitos e de guerras.
Muitas histórias da
Acupuntura e da Medicina Chinesa são verdadeiros mitos. Algumas referências
históricas não se impõem frente às pesquisas arqueológicas e ao crivo racional
do estudo de obras e documentos históricos. Até o momento, os historiadores
chineses ainda buscam mais evidencias e comprovações daquilo que é divulgado
como verdade histórica.
Ao visitar o Museu da
Medicina Tradicional Chinesa, em Beijing, China, pude contemplar a riqueza
histórica dessa arte-ciência milenar. Muitos pesquisadores durante séculos se
debruçaram sobre a magnitude histórica da Medicina Chinesa. Entretanto,
ocorreram transformações políticas e conflitos na China durante o século XX,
que abalaram as tradições e influenciaram a vida social e institucional do
país. A Medicina Chinesa em alguns períodos da história política da China foi
abandonada pelo poder público por influencia dos interesses da medicina
ocidental. Períodos de conflito social impuseram severas baixas no emprego da
Medicina Chinesa no país, agravando-se no governo de Chiang Kai-Shek, no qual
um número expressivo de mestres de Medicina Chinesa emigrou para o exterior,
sobretudo para Taiwan. O domínio Britânico, a invasão japonesa na China e o
crescimento do Partido Comunista Chinês, além do advento da segunda guerra
mundial ocasionaram um caos político-social no país, que só cessou com a tomada
do poder pelos comunistas liderados pelo Mao Tsé Tung.
A posição de Mao Tsé
Tung, quanto ao aproveitamento da Medicina Chinesa, era que ela deveria se
integrar à Medicina Ocidental, herança dos colonizadores britânicos. Tal
integração visava atender a imensa população do país que carecia de quase tudo,
inclusive de alimentação, higiene, saneamento básico etc. O desafio de atender
milhões de chineses levou o governo a criar formas especiais de formação em
Medicina Chinesa de curta duração. Assim nasceram os “médicos pés-descalços”
(Barefoot Doctors), que se instalaram nas “comunas” para socorrer as populações
mais carentes.
Entre os anos de 1966 a
1976, Mao promoveu a Revolução Cultural, visando, entre outras coisas, tornar
menos elitistas os sistemas educacional, cultural e de saúde da China. Durante
este período sucedeu à adoção do termo “Medicina Tradicional Chinesa” em lugar
de “Medicina Chinesa”. Mao lutou contra uma classe intelectual separada da
grande massa populacional. A Revolição Cultural ao mesmo tempo em que resgatou
e revitalizou a Medicina Chinesa milenar, também tentou promover uma integração
dessa sabedoria médica tradicional com os conhecimentos científicos ocidentais.
Pragmaticamente, não
era uma má ideia, mas como conectá-las no campo clínico já que se tratam de
paradigmas distintos, com nomenclaturas, racionalidades e filosofias díspares?
Esse desafio existe até o presente.
Um segmento da medicina
ocidental, ao incorporar a Acupuntura às suas práticas tem tentado invalidar as
teorias tradicionais da Medicina Chinesa, transformando a Acupuntura numa mera
técnica terapêutica complementar, proscrevendo toda a tradição e conhecimentos
milenares, dando-lhe outra roupagem. Devido a esse problema, órgãos da
administração estatal da Medicina Chinesa da República Popular da China
estabeleceram critérios acadêmicos e assistenciais, além de medidas de proteção
histórica desse patrimônio cultural do país.
Devido a tantas
narrativas que ocorreram no passado com a Medicina Chinesa no mundo, naturalmente,
muitas manipulações históricas aconteceram e acontecem no Ocidente, no Brasil
particularmente. A verdadeira história da Acupuntura no Brasil ainda está para
ser escrita. A maioria das versões históricas são incompletas, simplórias ou
direcionadas com finalidade de autopromoção ou por absoluta falta de informação
de quem escreveu. A verdade histórica da Acupuntura no Brasil necessita ser
resgatada. Ao esquecer os colegas pioneiros da luta pela Acupuntura como
terapêutica independente da medicina convencional, não apenas aqueles que estão
vivos, sobretudo os que já morreram há muitos anos, subverte-se a verdade
histórica e enaltece-se a aleivosia. Infelizmente, trabalhos acadêmicos
universitários foram realizados e fundamentados em histórias incompletas,
fictícias ou equivocadas da Acupuntura brasileira. Muitas informações
históricas importantes podem ser encontradas nas representações diplomáticas e
consulares do Japão e da China no Brasil, remontando às imigrações, japonesa e
chinesa, ocorridas há mais de um século.
Ao consultar dados
históricos da Acupuntura e da MTC no Brasil, deparamo-nos com referências
absolutamente conflitantes. As instituições médicas brasileiras de Acupuntura
investem em informações que não condizem com a verdade histórica, visando
fortalecer seus discursos corporativistas. Por outro lado, dirigentes de
instituições particulares resolveram escrever a história da Acupuntura
brasileira de acordo com seus interesses e intenções. A verdade é que os alunos
e a sociedade em geral tomam ciência de informações falaciosas ou equivocadas,
via internet, e repassam dados equivocados para frente.
É próprio da liberdade,
entretanto, deixar que haja mais de uma versão histórica, as quais possam coexistir
e até se contestarem, porém abrigar uma reelaboração da História com vista à
institucionalização da mentira e de objetivos comerciais, até mesmo do
fortalecimento do autorreconhecimento social e profissional, não pode e não
deve ser tolerado. A memória coletiva e a memória das sociedades rejeitam a
legitimação do erro histórico, pois sabemos que legitimar é dominar. Elaborar a
História a partir de uma só fonte, geralmente autorreferencial, cheira a
tirania ou impostura.
Os dirigentes de
instituições de ensino da Acupuntura e MTC do Brasil, que poderiam se unir para
fomentar uma pesquisa isenta sobre essa matéria histórica, por questão de
vaidade e de concorrência de mercado na captação de alunos, muitas vezes não
nutrem muita confiança uns pelos outros, acenando com simpatia apenas quando há
“coincidência de interesses”. Por este e outros motivos, as versões históricas
da Acupuntura no Brasil vão de relatos convincentes a pitorescas fantasias
autoalusivas.
Aristóteles, filósofo
grego, no terceiro século antes de Cristo, já dizia: "O historiador e o
poeta não se distinguem um do outro pelo fato de o primeiro escrever em prosa e
o segundo em verso. Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o
outro o que poderia ter acontecido."
Consideremos, então,
que o que escreveram de equivocado sobre a história da Acupuntura no Brasil não
se trata da prosa de um historiador, mas de verso de um poeta...
Oxalá, aqueles que, ao
lerem este artigo, possam fomentar uma discussão ética, uma pesquisa isenta sobre
a memória histórica da Acupuntura e da Medicina Tradicional do país.
Dr. Sohaku R. C. Bastos
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