ISTOÉ – O sr. tem uma visão crítica em relação à formação médica atual. Como era a graduação na sua época e como ela está hoje?
Antônio Carlos Lopes – Naquela época, tínhamos modelos no ensino médico. Éramos preparados por professores que, além de serem bons mestres, eram excelentes profissionais. Valorizavam o ensino à beira do leito, a relação médico-paciente, o aspecto humanístico da medicina, a ética no ensino. Eles montavam um currículo que tinha um compromisso com a comunidade. Não era simplesmente para preencher espaço, horário.
ISTOÉ – E o que aconteceu?
Lopes – Nas escolas tradicionais, federais, estaduais e algumas particulares, esse perfil ainda existe, embora em menor escala.
Por que em menor escala? Porque esses mestres que traziam a experiência da vida profissional para o ensino – muito importante porque na medicina só pode ensinar quem faz – foram desaparecendo. E não houve a possibilidade de seus discípulos darem continuidade àquilo que aprenderam em razão dos problemas de saúde do Brasil e do avanço da tecnologia. Nesse sentido, passou-se a dar mais atenção aos aspectos tecnológicos do que ao paciente, tratando-se mais a doença do que o doente. Hoje, há uma preocupação com a última ressonância magnética, por exemplo, quando na realidade 70% da medicina se resolve à beira do leito, desde que se converse com o doente, que se saiba examiná-lo. E há outro aspecto importante. Concomitantemente, foram surgindo escolas médicas criadas sem nenhum compromisso ético com a comunidade.
ISTOÉ – O sr. diz isso baseado em quê?
Lopes – Baseado no fato de ter participado da Comissão Interinstitucional do Ensino Médico (Cinaem) de 1991 a 1994. Trata-se de um órgão consultivo independente. Não é ligado ao Ministério da Educação. Mas avalia escolas médicas. A comissão foi criada pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo, com apoio do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Associação Médica Brasileira (AMB).
ISTOÉ – Em função dessa experiência, qual a sua opinião a respeito do ensino médico hoje?
Lopes – É a mesma das entidades associativas e lideranças médicas do País. As escolas médicas foram criadas numa avalanche. São mais de 100 atualmente. Elas surgiram muito mais por interesse econômico do que por qualquer outro. Essas escolas começaram a aparecer porque a faculdade de medicina passa a ser o carro-chefe de qualquer instituição. Muitas surgiram simplesmente porque o reitor imaginava que deveria ter uma porque, assim, sua instituição teria mais força. Aí, montava-se um programa pedagógico sem nenhum compromisso ético com o ensino e com a comunidade, sem estrutura acadêmica e metodologia adequadas e sem hospital universitário. Os professores eram médicos indicados, raríssimos com titulação (mestrado e doutorado). Na medicina, a titulação é muito importante. Não porque isso garanta que o médico seja um bom profissional. Mas a titulação pressupõe que o indivíduo tenha tido um treinamento e tenha sido avaliado pelos seus pares durante a carreira. Em última análise, o que caracteriza essas escolas médicas é a ausência de um corpo docente adequado e a inexistência de recursos materiais apropriados. Há casos em que as aulas de anatomia são dadas com slides, em vez de ser com cadáver. O ensino é fragmentado. Exemplo: a faculdade usa um hospital para que os alunos possam treinar. Quem dá a conduta de um paciente é o staff do hospital, e o professor vai lá e dá uma aula, sem concordar com o que foi feito. Não há vínculo direto com os hospitais em muitas dessas escolas.
ISTOÉ – Diante disso, que médico é esse que está saindo das escolas?
Lopes – Além de tudo que já expliquei, nessas escolas falta o compromisso ético com os alunos. Não se prestigia o estudante, não se abrem portas para ele, não se estimula a iniciação científica, nem se criam condições para o aprendizado. Não se valoriza também a relação do aluno com o doente. Então, o médico que sai dessas escolas não tem condições de exercer a medicina. Pior, não tem condições de aprender a medicina depois de formado.
ISTOÉ – O sr. acompanha a residência de médicos oriundos de faculdades consideradas fracas. O que mais chama sua atenção?
Lopes – Não dá para entender como é que depois de seis anos eles estão num nível tão ruim.
ISTOÉ – Isso significa o quê? Que eles não prescrevem remédios adequados, não conhecem interações medicamentosas?
Lopes – Não sabem nada disso. É quase pedir demais. Eles não conhecem coisas elementares. Por exemplo, eles não sabem que dois terços do coração ficam do lado esquerdo e um terço do lado direito. Se perguntamos quais são as válvulas do coração, eles não têm a resposta. E quando vão examinar o paciente durante a visita, percebe-se que não têm idéia de como fazê-lo. Não sabem fazer o exame clínico. Hoje, os alunos não estão preocupados em buscar informação, examinar um ambiente e desenvolver o raciocínio clínico. E também já encontrei alguns estudantes que no quinto ano me disseram: “Lamentavelmente, não sei nada.”
ISTOÉ – Na sua opinião, do total de médicos que saem das faculdades todos os anos, quantos são mal preparados?
Lopes – O porcentual de médicos mal preparados é da ordem de 90% ou mais. Existem cerca de 100 escolas. Cada uma tem uma média de 100 alunos. Quem forma um bom médico? Podemos contar umas dez faculdades, como USP, Unifesp, Santa Casa/SP, a Faculdade do ABC/SP, USP/Ribeirão Preto, Unesp/Botucatu, Unicamp, UFRJ, UFMG...
ISTOÉ – Há, portanto, um risco para os pacientes?
Lopes – Sim. Essas faculdades lançam no mercado milhares de alunos que muitas vezes mal sabem escrever uma cartilha. É uma enorme quantidade de pessoas. Delas, muitas não conseguem nem entrar na residência. E aí há outro problema. A residência médica é a melhor forma de treinamento e aprendizado após a graduação. Mas, na grande maioria das vezes, ela representa uma mão-de-obra barata. Não há supervisão, modelo pedagógico, estrutura acadêmica. A grande maioria dessas escolas tem residência sem supervisão. Isso mostra que falta uma avaliação adequada dos programas de residência médica.
ISTOÉ – A supervisão não é obrigatória?
Lopes – É obrigatória. Mas recebo informações frequentes a respeito de casos em que o paciente teve complicações sérias porque o residente precisou tomar atitudes sozinho, sem supervisão.
ISTOÉ – Que tipo de riscos corre o paciente atendido por um desses profissionais despreparados?
Lopes – O médico não devidamente formado, que não encontra residência médica para se aprimorar, é um profissional que não tem a menor condição de tratar nada mais além de gripe, diarréia, ânsia de vômito. Isso se o caso não complicar. Para problemas mais complexos, eles não têm condições. Por isso, digo que essas escolas não estão preocupadas em formar os alunos.
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